In§tante§ ð'um £ouco
Oito meses já. Oito meses e onze dias e, se olhar para o relógio, digo-te o numero das horas: oito meses, onze dias e dezoito horas. Quase dezanove. Há oito meses, onze dias e dezoito, quase dezanove horas tu no patamar, com duas malas, a carregares no botão do elevador que chegou num instante para mim e demorou eternidades para ti pelo modo como batias a ponta do sapato no chão e eu no capacho a ver-te, demasiado cheio de palavras para conseguir falar. Depois o elevador parou, abriste a porta, empurraste as malas para dentro e foste-te embora sem olhar. O perfume aguentou-se um bocado por ali. Quando deixei de o sentir fechei a porta. Inclusive do quarto. Inclusive do armário onde a tua roupa esteve. Cabides vazios, nenhum cheio. Sobrou metade de um brinco numa gaveta. Não um brinco caro, uma dessas coisas de fantasia que usavas no verão. Plástico e arame, arame e plástico com uma conchinha verdadeira na ponta. A conchinha baloiçava ao falares. Fui buscar o martelo e acabou-se o brinco. O problema
foi a mossa que deixei na cómoda. Gostava que tivesses visto: plásticos e arames quebrados por todo o lado. A conchinha não sei onde pára, nunca mais lhe pus a vista em cima. Um destes domingos, que é quando passeio pela casa a odiar-te, encontro-a meio escondida numa frincha do rodapé, puxo-a com uma faca ou isso e aí está o martelo de novo. Com mais força e a conchinha pó. E a partir daí sim, somes-te por completo. Um alívio. Mas como não sou vingativo desejo-te que estejas bem, desde que
não te ponha a vista em cima. E se te puser a vista em cima oxalá não tenha o martelo. Oito meses, imagine-se. Apetece-te um dos iogurtes fora de prazo do frigorífico? Desde há oito meses só há coisas fora do prazo aqui, a começar por mim. Claro que continuo a trabalhar , a sair com os rapazes à sexta, a trazer de tempos a tempos uma pequena ou outra sem brincos de fantasia, com brincos autênticos. Uma delas aspirou-me o chão. Queria fazer o ninho comigo, ocupar o teu lugar. Era ruiva. Não ruiva pintada, ruiva autêntica. Sempre que conheço uma ruiva começo a contar-lhe as sardas, é mais forte que eu, esqueço-me dos meus deveres de homem: fico para ali de dedinho espetado, a somar. Aspirou-me o chão, foi lá abaixo deitar dúzias de jornais antigos no contentor, informou.
- Esta escova de dentes está uma miséria
não conseguiu ligar a torradeira, deu-me um papelinho com o telefone e foi-se embora. Hei-de tê-lo por aí, na gaveta das facturas. Não consegui ligar a torradeira visto que ninguém consegue ligar a torradeira, em Março deitou umas chispas, deu um salto e faleceu. As fatias de pão continuam entalas no interior do mecanismo, invisíveis, excepto um cogumelozinho de bolor que surge de vez em quando do metal amolgado.
Á parte isso e à maior parte das torneiras pingarem vai-se vivendo: oito meses e onze dias sem ti é obra. A minha mãe sugere que me case outra vez. Lava-me a roupa, dá um jeito nas coisas. Não falamos de ti. Fala da enteada da vizinha do andar de baixo, que tem bom feitio, é solteira e trabalha nos impostos. Um autocarro atropelou-lhe o namorado. A minha mãe garante que já me mencionou a ela várias vezes, Nessas conversas à porta do prédio, cada qual com a sua chave e o seu saco de compras e a enteada deu ares de interessar-se. Faço ideia do que a minha mãe lhe terá dito. Sei que pediu um retrato para me mostrar e no retrato uma mulher de aspecto triste, sem idade. Não ruiva. Pelo menos não teria de contar-lhe as sardas. O problema é que a tristeza não se pega e não me vejo a aquecer o leite de manhã apagando uma lágrima na manga do pijama. O autocarro arrastou-lhe o namorado uns vinte metros e esses coisas marcam. Ou então foi sempre triste, há pessoas a quem alegra sofrer. O que me custou mais no retrato é que usava brincos parecidos com os teus, de conchinha na ponta. Sinceramente não me apetece martelar mais nada.
Oito meses e onze dias, olha-me para a rapidez do tempo.
Daqui a momentos sou velho, quarenta anos, cabelos brancos, pedras na vesícula, essas maçadas, uma eternidade para subir os degraus, problemas para segurar o cuspo do lado esquerdo da boca. Tu não mudaste de certeza, nunca mudaste desde que te conheci. Umas rugazitas, talvez. Não, nem sequer umas rugazitas, intacta.
Chamavas-me
- Meu coelhinho
ao princípio, depois do princípio, passaste a chamar-me
- Amadeu
Passaste a não chamar-me fosse o que fosse. Às vezes dava por ti a espiar-me com pena, abanando a cabeça. Não tive coragem de perguntar o que significava o abanar da cabeça, suponho que desilusão a meu respeito, ou
- O que estou a fazer aqui?
ou
- Porque carga de água te aceitei, enganei-me
ou qualquer sentimento desse género e eu calado. O que podia dizer? Tudo se passou em silêncio, aliás. Um feriado estava eu na sala, ouvi barulho de gavetas no quarto e eras tu às voltas com as malas. Nenhum de nós soltou um pio. Arrumavas as malas de costas para mim e ias empilhando camisas dobradas: Escutavam-se os automóveis a passar na rua, ia jurar que se escutava o pêlo do tapete ao lado da cama a crescer. Quando acabaste afastei-me para o lado e deixei-te passar. Não senti nada salvo uma espécie de vazio. Não bem vazio, um oco enorme. Perguntas que não fui capaz de fazer. A lembrança do
- Meu coelhinho
a atazanar-me. O que sucedeu connosco, explica-me o que sucedeu connosco. Tenho a certeza que não mudei. Quem mudou foi o andar, os móveis, apesar do sol a impressão de que me chovia por dentro. Se fechasse os olhos
(não fechei os olhos)
a chuva a descer atrás das minhas pálpebras. Não fui à janela ver-te na rua, fiquei para ali encostado ao louceiro, com ganas de meter-me debaixo dele como um coelhinho. O teu coelhinho. Há sempre alturas em que apetece pegar num bicho ao colo, nem que seja eu, e passar-lhe a mão pelo corpo, das orelhas à cauda, a dar conta do coração muito rápido, muito rápido, de uma vida aflita debaixo dos dedos. Oito meses, onze dias, dezanove horas e meia. Para a semana a minha mãe prometeu trazer-me a enteada da vizinha. Não vai encontrar-me: estarei no interior da torradeira como as fatias de pão. Quando muito hão-de ver o cogumelo de bolor de uma lágrima a surgir do metal amolgado.



António Lobo Antunes

28 Comments:

Blogger £ou¢o Ðe £Î§ßoa said...

Gude Pascal fore evribódi!

Kisses ande agues
Até outro instante

6/4/07 00:18  
Blogger Magia said...

Olá Crazy Boy!

Já tinha lido...!
Já tinha lido umas duas ou três vezes!!!
Eu sei que sou desmancha prazeres...mas está-me no sangue...que fazer...?

(Por isso e por outras razões, agora não li...!)

Mas voltarei para ler...!
Agora fico só a escutar a musica!
Mui Linda!

Gude Pascal par tuá aussi!

...e um beijo!

6/4/07 00:24  
Anonymous Anónimo said...

nossa que maravilhoso....nunca tinha lido ao contrário da magia....realmente lindo, triste mas lindo!

Tainha

6/4/07 03:07  
Blogger Estranha pessoa esta said...

A esta hora apenas li a última frase.....

Como tal nem devia estar aqui a comentar nada.
Mas, também nunca comento nada de jeito, por isso também é naquela....

:P

Abraço estranho para ti maluco da capital (por falar nisso mete-te à viva que ouvi dizer que Lisboa ia deixar de ser capital)

6/4/07 03:52  
Anonymous Anónimo said...

De passagem,fiquei a ouvir a música e fui relendo.
Contam-se dias, horas, pelos mais diversos motivos.
Uns de alegria outros de uma lágrima solta.


Uma Boa Páscoa,
Um abraço

6/4/07 09:29  
Blogger © Piedade Araújo Sol (Pity) said...

Uma boa escolha....

6/4/07 15:15  
Blogger adc said...

António envolve-nos no seu sentimento, tal qual...
Lobo que nos observa e inquieta cá dentro!
Antunes continua a superar-se a si próprio, possui a insatisfação constante do poeta, do narrador que se demarca pelo relato da situação incomum, pelo nunca cair no trivial... abrindo-nos, afinal, a alma ao quotidiano banal.
Amo!

Bjs da adc

http://poemasdesarrumados.blogspot.com

6/4/07 15:33  
Blogger Sha said...

Quando assim acontece, nada a fazer a não ser... renascer!

Olha, a Páscoa parece-me uma boa altura para estas coisas do renascimento.

Ah, não...(que disparate, faço sempre confusão!) na Páscoa é a ressurreição...

Bjo fofo!

6/4/07 15:34  
Blogger Poeta Đa Lua said...

meu louco de lisboa:
ontem, li gude pascal.
e hoje, retornei para ouvir, sentir a música...
tão logo a tua presença me enche de alentos, meu louco.
um abraço e um sorriso!

6/4/07 17:39  
Blogger DarkMorgana said...

Olá ganda maluco!
Estou de volta!
Não...não foram 8 meses...foram "só" 3...

Boa Páscoa pati!
Jinhos

6/4/07 18:26  
Blogger Maria Carvalho said...

O sempre mais que extraordinário António Lobo Antunes!! Adoro lê-lo. Beijos.

6/4/07 21:00  
Blogger Poeta Đa Lua said...

Quem inspirou você a ser tão romântico, será quem, quem?
Hummm, eu não me atrevo a responder.
Um abraço e um sorriso!

7/4/07 14:01  
Blogger Lu said...

Estou práticamente sem palavras. Nunca tinha lido e achei delicioso! Muito boa escolha, e com esta música de fundo... nem se fala! Excelente!

Boa Páscoa!! :)
Beijos

7/4/07 14:19  
Blogger MAR said...

...às vezes bem que podia apagar tudo da memória com uma simples martelada mas depois...e depois...será que não sentia remorsos de não te um "vivido,... um acabado, um momento que outrora fora "bom" e agora considerado mau! porquê e porque isso deve ser a saudade!
gostei...especialmente da música...bem enquadrada com o texto! :)

7/4/07 15:31  
Blogger mac said...

Linda músuica e lindo texto. Não conhecia...vou ter de comprar este livro.

7/4/07 22:20  
Blogger Papoila said...

Senhor Louco!
Adorei esta sua escolha!
Mas...passo para deixar os meus votos de uma Feliz Páscoa.

“ Cotovia canta-me as tuas canções…
no nascente azul de voo erguido
ao encontro do Sol… recém-nascido…
que na rósea alvorada ao céu levantas
nos frémitos da luz… feliz… incauta!”

Beijos

7/4/07 22:42  
Blogger adc said...

Tive que voltar... identifiquei-me demasiado com um dos parágrafos!

"Um alívio. Mas como não sou vingativo desejo-te que estejas bem, desde que não te ponha a vista em cima. E se te puser a vista em cima oxalá não tenha o martelo.(...)"

Contudo, recuso entregar-me aos fungos!

:))

Bjs da adc

7/4/07 23:42  
Blogger Jose said...

Bela ideia publicar aqui este texto mesmo não sendo da tua autoria, mas quando cheguei ao fimnão sei porque veio-me uma frase há mente.

O AMOR É FODIDO.


Um abraço com uma beer pelo meio


José

8/4/07 10:31  
Blogger delusions said...

Este homem é de facto qualquer coisa... Não conhecia este texto e adorei... Triste muito,mas lindo... Adorei a música também... de quem é?

Bjs* espero que a pascoa tenha sido boa.

9/4/07 00:28  
Blogger Miudaaa said...

Um Louco com um dose de Loucura, simplesmente deliciosa.
ParaBéns pela escolha.
Um Abraço ao António.
Um sorrios de miudaaa ;)

9/4/07 14:38  
Anonymous Anónimo said...

Triste e forte.
um abraço.

9/4/07 16:32  
Blogger Azul said...

Ao som desta música lindíssima fui lendo e... nem sempre as coisas seguem o percurso que desejavamos... mas é a vida como ela é... seguir em frente é o que nos resta fazer...
Beijinho
Azul

9/4/07 17:12  
Blogger Brain said...

Já conhecia.
Já havia apreciado.
Tanto, quanto aprecei relê-lo.

Excelente escolha.

Abraço.

9/4/07 17:29  
Blogger Ana Tejim said...

Li apenas metade... e as lágrimas desceram... fiquei só a ouvir a música que descia nas minhas lágrimas e no salgado delas... a sentir-me assim... num arrepio gelado! Hoje não vou sentir estas lágrimas... Porque hoje é um dia cheio de luz e cor!!!

9/4/07 18:21  
Anonymous Anónimo said...

Olá, espero que tenha recebido amendoas doces... um texto interessante... um abraço...

9/4/07 22:22  
Blogger Cleopatra said...

Gosto deste texto.
Não é?!

9/4/07 23:42  
Blogger Cleopatra said...

A impressão de que me chovia por dentro.......

9/4/07 23:43  
Blogger Andreia said...

Adoro o sr. António Lobo Antunes... Faz-me lembrar alguém...

o "Amadeu" não devia gostar assim tanto dela... senão teria ido, teria corrido...
agora diz que fica "com ganas"...
duvido!

;)

10/4/07 19:27  

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