In§tante§ ð'um £ouco: Crónica Do Pescador Da Marginal

Crónica Do Pescador Da Marginal

Que história é essa de queres ser feliz comigo, sou um chato. Não gosto de conviver, não gosto de sair, não gosto de cinema, não gosto de praia, nem sequer gosto de jantar fora, gosto de estar no meu canto e que não falem comigo. Que raio de felicidade te podia dar? Ficares num canto também a aborreceres-te? Além disso não reparo nas datas: nos teus anos, nos meus, no dia em que nos conhecemos e portanto não ofereço flores, não dou beijinhos, não abraço, não comemoro, não te deixo de lágrima no olho, comovida, a pôr rosas na jarra. Gosto de pescar. À sexta-feira à noite saio com a tralha para a Marginal e fico ali até de madrugada. E ao sábado. E ao domingo. Não dou pelos faróis dos carros. Não dou pelo cheiro do rio. Acho que não dou pelos peixes. Calculando bem talvez nem goste de pescar: gosto de me sentar na muralha a ver as luzes de Almada reflectidas na água preta, a tremerem. Isto sem pensar em nada.
Apenas sentado na muralha a ver as luzes de Almada a tremerem. Como podiam interessar-te as luzes de Almada a tremerem? Fazem lembrar olhos exactamente no instante das lágrimas, que vacilam. Se calhar as luzes interessam-me porque nunca choro. E não percebo essa história de queres ser feliz comigo. Trabalhamos no mesmo sítio.
Vês-me todos os dias. Almoçamos com os colegas na cantina. Quase nunca falo. Digo
-Pois é
de vez em quando para não julgarem que sou malcriado. O jantar é em casa com o meu pai. O meu pai também quase nunca fala: se o silêncio se prolonga demasia tempo dizemos
-Pois é
um ao outro e continuamos a descascar a fruta. O meu pai não tira o cachimbo mesmo quando mastiga: mete a comida pelo outro canto da boca, soltando argolinhas de tabaco. Se por acaso faleceu aposto que não conseguem arrancar aquela coisa do queixo. Disse-lhe
-Não há quem fecha a urna com você assim
ele achou que um buraquito na tampa, ao pé do crucifixo, resolveria a questão, e de tempos a tempos uma argolinha de tabaco subiria da lápide. Só tenho que lhe deixar dois ou três pacotes nos bolsos para quando o fornilho não tiver mais que cinza dentro. De qualquer maneira, na data em que isso acontecer o reflexo das luzes de Almada vai tremer na água.
Para ser sincero acho que é por causa do reflexo que não quero ser feliz contigo. Imagina, se tu te fores embora, eu sentado na muralha com os olhos exactamente no instante das lágrimas, a vacilarem: mil vezes estar num canto e que não falem comigo, mil vezes o cachimbo do meu pai
-Pois é
e eu
-Pois é
de volta. Há coisas que a partir de uma certa idade a gente não aguenta e fiz quarenta e três anos em Março. Quarenta e três, mesmo que a gente o negue, é uma porção deles. Foi-se a minha mãe, foi-se a minha tia do lado da minha mãe que morava connosco, o meu irmão, na semana seguinte à esposa deixá-lo, abraçou-se a um comboio em Algés: sobrou um sapato, um bocadinho de calça, a camisola com sangue a vinte metros da linha, uma das hastes dos óculos. (Era míope, esbarrava na mobília sem querer.) Ter-se-á abraçado de propósito ao comboio? Durante semanas, depois disso, o cachimbo do meu pai mais rápido e nenhum de nós
-Pois é
a descascarmos a fruta mudos, com a maldita da faca a falhar, a falhar. Demorou a conseguir cortar o pêssego de novo. Temos a haste dos óculos na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas, que serviam ignoro em que portas. Talvez que se pudesse abrir o
-Pois é
com elas e dentro do
-Pois é
o meu irmão a sair para o comboio explicando
-Já venho
e veio em pedaços
(alguns pedaços)
como um modelo de armar a que faltavam metade das peças, à medida que o cachimbo ia soltando argolinhas. Foi o único momento em que me apeteceu fumar. A minha cunhada refez a vida, desapareceu. Mora em Espanha, contaram-me, com um caixa de banco. Ao regressar da pesca não trago peixe na cesta, deito-o de regresso ao Tejo. Isto antes de manhã, minutos antes de manhã, no receio que as luzes de Almada se apaguem. Não me abraço ao comboio para Lisboa, venho dentro dele com a tralha ao meu lado. Nem um cão na rua excepto um desses cachorros vadios que se não interessam por mim, de focinho rente ao passeio a murmurar. Percebo que o meu pai se volta na cama. Que a torneira de um primeiro vizinho principia a verter, o que acorda cedo para correr no parque numa expressão à beira do enfarte ou do orgasmo. Ao ver-me no espelho a minha expressão muda num estalinho como os números dos relógios digitais onde sou um monte de zeros. Não acredito que tu feliz com um monte de zeros, a aborreceres-te num canto também. Se me perguntares se gosto de ti digo que sim. Ou seja diria que sim no caso de a haste dos óculos não estar na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas. Mas está. Portanto o mais que posso é declarar
-Pois é
e pensar noutra coisa. Tenho pena. Palavra de honra que tenho imensa pena e a faca volta a falhar o pêssego, desajeitada. Apetece-me, calcula, oferecer-te flores. Não ofereço. Abraçar-te. Não abraço. Reparar nas datas. Não reparo. Fico para aqui de mãos nos joelhos. E, como não gosto de sair, se me convidares para o teu casamento desculpa mas não vou. Contribuo para a prenda dos colegas de trabalho
-Falta o Guedes
e fico reflectido no tampo de água preta da secretária, a tremer.

António Lobo Antunes (crónica publicada na Visão nº712)

Serei um entre muitos que o admiram, talvez com uma ligeira diferença: gostava de estar sentado, quieto ao seu lado apenas para o ouvir pensar...

49 Comments:

Blogger Hannanur said...

Agora sim...tornaste a noite mágica
Adorei a escolha...vou ficar mais um pouco a deliciar-me...

1/11/06 00:25  
Blogger Papoila said...

Esta noite sentei-me aqui ao teu lado a ver António Lobo Antunes a pensar! Mágico!
Beijo

1/11/06 01:02  
Anonymous Anónimo said...

Hoje, palavras com sabor diferente!
Saudades também da marginal,a água,do lado de lá as luzes...
O que não fazemos mas pensamos e sentimos;
reflexos ou o pêssego que se descasca quando apetece tomar o sabor da fina e aveludada pele.
( de escrita aparentemente simples,ler A.Lobo Antunes, um bom momento,também para pensar!)
Beijo,
f.l.

1/11/06 01:19  
Blogger Joker said...

Olá Louco...
Gostei muito da tua escolha.
A fuga á vida e as mil desculpas que se formam em nós para não perdermos o nada que temos.
O apego a umas luzes que não sabemos ao certo o que são e o receio estupido de as ver apagadas...
"Que história é essa de quereres ser feliz comigo" se nem eu quero ser feliz?
Sabes Louco, mais do que a crónica, foram as tuas palavras que me tocaram. Foi muito bom, sentar-me quieta ao teu lado, a ouvir-te pensar...

Até outro instante de reflexão...

1/11/06 02:38  
Blogger a mota do pai said...

Entrei e gostei. Vou sem duvida voltar aqui.
Adoro ver as luzes de Almada á noite reflectidas no rio enquanto precorro a calçada gasta do Ginjal.

1/11/06 08:19  
Blogger marta ré said...

Em tudo, reconheci! Absorvo as palavras e quase me sinto do outro lado da margem.

Que o feriado te traga boas inspirações.

1/11/06 10:12  
Anonymous Anónimo said...

Louco de Liboa:

Então somos dois a admirar e apenas sentí-lo pensar...
Somos dois loucos incompreendidos!
No fundo, sabemos o que queremos, e ninguém além de nós poderá.
Um abraço e um sorriso!

Menina da Lua

1/11/06 10:45  
Anonymous Anónimo said...

Olá poeta louco de Lisboa
Lindo texto…está tudo lá escrito…
Senti um nó muito grande em qualquer parte de mim depois de o ler…
O som também marcou-me…
Um braço amigo

1/11/06 10:45  
Blogger Ligada à Terra said...

Parei!
Ouvi a musica várias vezes e não sei porque fechei os olhos depois de ler esta crónica!
Será porque não vendo julgamos não ser vistos?!
Pois é
Pois é
maldito medo!

Um abraço redondo

1/11/06 11:22  
Blogger Joker said...

Pois é

1/11/06 14:16  
Blogger Som do Silêncio said...

Momento mágico o que passei aqui!

Obrigada Louco!

1/11/06 14:45  
Blogger Andreia said...

Lindo...




Pois é...

1/11/06 14:54  
Blogger Teresa Durães said...

li vorazmente
fiquei sem palavras
sem voz
e quantas são as vezes que me apetece dizer o mesmo
- Pois é
e quantas são as vezes que a faca falha o cortar do pêssego
(e quantas as que me pergunto como podes ser feliz comigo? que nem de datas me lembro)
mas é

boa tarde

1/11/06 15:07  
Blogger Desassossego said...

Pois é... fiquei sem palavras... embalada pela música e pela crónica... Obrigada....

Um beijo doce.

1/11/06 15:25  
Anonymous Anónimo said...

O texto é lindissimo, e a escolha musical nem se fala. Este post deixou-me melancólica, com vontade de mergulhar dentro de mim mesma.

1/11/06 15:32  
Anonymous Anónimo said...

Lobo Antunes?! Tem esse dom...
E escreve ao correr do q sente hoje!
E q trajectória de vida ele fez!
A vida assim nos 'interioriza'...

Penso q ficaste sentado como eu em frente ao televisor na sua conversa com Judite de Sousa [um pouco sem jeito perante algumas das respostas]!

A morte da mulher q 'afinal' ele sempre amou na alma, colocou-o face a si próprio...

Melodia dedilhada com infinito sentimento q só um instrumento como o piano pode transmitir... queixume, nostalgia, fragilidade, viver.

bj em tons de silêncio

1/11/06 17:14  
Blogger Andreia said...

Grande escritor ele.

Um abraço para esse clarinetista escondido;)

1/11/06 18:13  
Blogger Joker said...

Pois é
"Apetece-me, calcula, oferecer-te flores. Não ofereço. Abraçar-te. Não abraço."

Pois é
Trouxe-te uma doors travessa...

Pois é

1/11/06 18:31  
Anonymous Anónimo said...

Bem até parece que Lobo Antunes está a dar razão aquela frase:"Se os homens falassem do que sabe o silêncio seria de ouro" Sem ofença para os ditos;) gostei muito do texto de hj e acredita que por esse mundo fora haverá muitos pescadores:) bjs

1/11/06 19:05  
Anonymous Anónimo said...

palavras em forma de pensamento. António é o sentido. embora os peixes lhe evitem o anzol. definitivamente único.




Adorei!


Abraço!
_______________________________

1/11/06 22:07  
Anonymous Anónimo said...

Um texto extenso que não custou nada ler. Pudera! O dom da escrita é algo de muito especial... Não é para todos...

Beijo grande.

1/11/06 22:32  
Blogger Giorgia said...

sou fã deste senhor... e tenho sempre dificuldade em falar dele... vou sair em silêncio!

beijinhos

1/11/06 23:44  
Blogger Estranha pessoa esta said...

....
Falta-me o pois é...
Deixo um pois é.

2/11/06 03:33  
Blogger Joker said...

Vim reler pela enésima vez...posso?

Olha lá ó Louco, deves ter "a haste dos óculos na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas"...deve ser por isso que não vês bem...
São DUAS (2, two, II) BOAS!!!!

Pois é

2/11/06 09:54  
Blogger Maria P. said...

Fantástico.

2/11/06 10:07  
Blogger Polly Jean said...

Obrigada.É tudo quanto te posso dizer.

2/11/06 10:13  
Blogger maria inês said...

Já tinha lido (compro a revista) muito bom!!!

(e muito obrigada pela lembrança de teres trazido para aqui)!!!

A vidinha anda complicada!!!

2/11/06 10:46  
Blogger Hannanur said...

OLá

Não houve mudanças, mas não faz mal...é tão bom voltar aqui.

Beijo e tem um BOM DIA!

2/11/06 11:01  
Anonymous Anónimo said...

Vou ser o único que vai dizer que não é fã desse senhor, e por acaso até estive a ver a entrevista dele na RTP1, mas este texto realmente é muito bonito. Como sempre boa música.

2/11/06 11:32  
Blogger Carla said...

quieta a pensar...
que que age assim é porque desistiu de si... e apenas aguarda a morte que já vive em vida...

Ando sem tempo e a fugir
Mas vim desejar-te
Um dia a sorrir...

Beijos e bom fim de semana

2/11/06 11:32  
Anonymous Anónimo said...

Olá poeta louco de Lisboa
Só quis rever A crónica do pescador da marginal e, já saio sem fazer barulho

Fui


Um abraço amigo

2/11/06 11:47  
Blogger Mixikó said...

Adorei...Excelente escolha...grande Lobo Antunes...Um beijinho para ti

2/11/06 14:52  
Blogger Joker said...

Olha...

-Falta o Guedes
-Pois é
-Foi tirar o cavalinho da chuva
-Tenho para mim que fechou a pestana
-Será?
-Não sei
-Pois é
-Falta o Guedes

2/11/06 15:42  
Blogger Sendyourlove said...

fiquei refastelada na minha cadeira a ler as palavras tão bem conjugadas e a ouvir esta musica perfeita...e a chuva lá fora, perfeito.

2/11/06 16:01  
Blogger Ana Caio said...

perco-me nas palavras de Lobo Antunes...sou também uma entre muitos que o admiram! salientaste uma crónica deveras interessante! apenas gostamos...não interessa o que a outra pessoa pensa sobre o que tem para oferecer... o coração é assim!

2/11/06 17:39  
Anonymous Anónimo said...

O mais engraçadao é que ele no fundo sente e que as águas e os reflexos só tremem porque ele tem os olhos cheios de água prestes a cair e é aí que ao semi cerrá-los tudo reflecte e treme...ilusões de óptica o realidade ficcionada?
E fico aqui a escrever-te enquanto já não espero a resposta que te pedi e que não vem...
ainda assim e sem resposta, obrigada.

2/11/06 18:06  
Blogger Bia said...

Nunca tinha lido nada do género, fiquei impressionada com a autênticidade da escrita, sente-se o silêncio, vê-se o cachimbo, mas percebe-se a fragilidade de um homem tão duro quando as luzes que se refletem no rio possam indicar que ele tem os olhos rasados de água. Ele conhece-se melhor que ninguém e isso é de apreciar...
Gostei muito e vou voltar com mais calma, para voltar a ler.
beijo

2/11/06 22:33  
Blogger Maresi@ said...

Feliz essa tua escolha...alguem muito especial e com o dom da palavra...belo texto

Beijo suave_______maresi@

2/11/06 22:39  
Blogger Do éter para o éter said...

Também a mim me cansam os momentos estrangulados pelo vazio do tempo,

Também lhes queria escapar,
E preservar tudo o que não é, e é só meu, e ninguém por isso pode assassinar..

Pois é....
Pois é...é tudo o que posso dizer para deixar correr o tempo dos outros,

Mas ao escrever tudo o que sou e não se precipita,
... sou a que ama, odeia e mata e tempo...
Sou tudo isso, desde que o seja em silêncio!
De mim para o vazio do infinito...

Dorme bem

3/11/06 01:33  
Blogger Miudaaa said...

Gosto de ouvir os teus gritos silenciosos!!!
... olhaaa ainda agora ouvi "um"

3/11/06 02:11  
Blogger Maria Carvalho said...

Eu admiro profundamente o António Lobo Antunes. Sou daquelas pessoas que acha tudo sublime o que ele escreve!!! Fico sem palavras, obviamente. Beijos.

3/11/06 09:21  
Blogger Alex said...

Sou suspeita.
Adoro-o.
É o único escritor capaz de escrever à velocidade do pensamento, a sua loucura permite-lhe. Parabéns pela escolha.
Beijo

3/11/06 11:31  
Blogger Alex said...

Imaginei-te na visita virtual e a ficares tonto. Ri-me. É bom rir, haver pessoas que nos fazem rir.

Obrigada pelas tuas palavras.
São importantes. Muito.


Atenção que nós apenas fizemos o site, a Casa Vicentina fica em Odeceixe mas nós não somos de lá, é um lugar que gostamos particularmente. Este projecto deu-nos prazer. É bom receber o feedback de quem não conhece o local.


Um beijo para ti, obrigada!

3/11/06 13:32  
Blogger L.R.S. said...

Como subscrevo as tuas palavras!... mas na impossibilidade de ouvir pensar os magos das palavras, resta-nos o deleite de os ler. Amei este texto. Obrigada pela partilha :)

3/11/06 16:54  
Blogger Isabel Magalhães said...

Presente!


eu sou uma outra que o admira e muito! (até me esqueço que é do Benfica!)

e tenho vivido sempre ao seu lado, leia-se ao lado dos livros que escreve - apesar dos que dizem que escreve para ele, who cares! - e destes pensamentos que todos temos mas não sabemos passar para o papel.

Obrigada pelo tempo que passou a oferecer-nos esta crónica do meu ESCRITOR!

(E como ele era lindo, Meu Deus! com aquele olho líquido e o cabelo louro.) :)

Uma boa continuação de vida. A vida não se importa com essa coisa dos fins de semana, pois não? :)

3/11/06 19:42  
Anonymous Anónimo said...

... que história é essa de me obrigares a sentir, provocar o pensamento, fazer estremecer, corar, reflectir, ler, ler, ler e amar essas palavras de puro sentido da vida?!
... que história é essa de tanto querer amar?!
... que história essa de amor?!
adc

4/11/06 20:16  
Blogger Marlene Maravilha said...

belo texto. Gostei.
abraços

11/11/06 05:02  
Anonymous Anónimo said...

Não comento...
apenas leio e fico no canto para não quebrar o grito silencioso que senti...
Parabens pela escolha

Até...

21/11/06 10:40  
Blogger Noa said...

"Pois é"
:o)
Confesso que fiquei rendida e tentada a sentar-me ao teu lado epara ouvi-lo também
beijokas

2/12/06 03:33  

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